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Entrevista

Heberton Rodrigues

Conheça a história de vida do Diretor de Orçamento e Finanças da Pró-Reitoria de Administração (Proad)
publicado: 20/07/2015 10h27 última modificação: 03/03/2016 09h15
Ascom/IFMS

Tudo que se passa na vida de uma pessoa serve para construir o que ela é no momento atual. Esse raciocínio cai muito bem ao Heberton Luiz Duarte Rodrigues, servidor do IFMS e atualmente diretor de Orçamento e Finanças, da Pró-reitoria de Administração. Olhar meio sisudo, sorriso controlado, postura de soldado. A primeira impressão é de que suas experiências militares o fizeram assim, com cara de guerreiro. Mas essa imagem tem uma origem mais longínqua. Ainda menino, aos cinco anos, perdeu o pai. A família era grande e foi dividida. Cada filho para um lado. Ele acabou separado da mãe, indo morar na casa de um tio-avô. Ficou lá até os doze anos, quando decidiu ir para a casa da mãe e fugir das brigas constantes com a tia e a prima, que não toleravam o carinho do tio por ele.

Na periferia de Campo Grande, Heberton cresceu cercado pela pobreza, passou fome e se envolveu com gangues. Tinha tudo para enveredar para o caminho do crime: problemas familiares, poucos recursos financeiros, más companhias. Só que um outro destino estava reservado para ele, graças à leitura. Os livros se tornaram um refúgio contra os problemas. Depois, a busca pelo conhecimento e a força de vontade o ajudaram a conseguir emprego, a passar em vários concursos e a superar o passado. Heberton lembra dos tempos remotos com uma tristeza nos olhos, mas com uma força na voz de quem superou desafios e conseguiu construir uma vida melhor. Já na primeira pergunta afirma que a infância "não foi das melhores". É a certeza de quem aprendeu com o que viveu.

Leia e conheça a história de superação desse nosso colega.

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Como foi sua infância?

Bem, digamos assim, não foi das melhores. Eu sou órfão de pai desde os cinco anos. Fui criado por um casal de tios-avós em fazenda. Meu tio tinha uma perspectiva pra mim, mas a minha tia-avó não queria. Então eu sofria na pele esse conflito. Porque eu sofria dois tratamentos: um na presença dele e outro fora da presença dele e isso era terrível. O sonho dele era que eu fosse advogado, até me colocou numa boa escola. Mas minha tia quis que ele me tirasse de lá, que eu fosse apenas um empregado da fazenda. Com o tempo, ficou impossível a convivência já que ela não me aceitava. Era um ambiente inóspito, opressivo e ambíguo. Não me favoreceu em nada, ainda mais na adolescência, que já é difícil com assistência da família, imagine sem.

Um dia meu tio me chamou pra conversar e falou: você tá querendo ir embora? Eu falei: quero, não quero mais ficar. Ele falou: arruma suas coisas que eu vou te levar. Aí eu falei: não, mas eu tenho aula de (...). E ele falou: não, não! Arruma que eu vou te levar agora. Inclusive ele ficou chateado. Daí, aos doze anos, eu retornei ao convívio com a minha mãe e desde então passei a morar numa região suburbana de Campo Grande, na Moreninha. Um lugar ermo, com índice de criminalidade extremamente alto. Não tinha a infraestrutura de hoje. Quando meu tio me deixou lá falou algumas coisas pra minha mãe, que eu seria um marginal. Provei o contrário. Com todas as dificuldades, me formei numa faculdade pública, sendo aprovado em terceiro lugar num vestibular público.

A Moreninha não era o bairro que é hoje.

A Moreninha há 31 anos não tinha asfalto. Era um caos. Você sofria um preconceito quando falava que era de lá. Os caras perguntavam se você era ladrão, se roubava Redley. Era extremamente difícil. Campo Grande era uma cidade totalmente sem perspectiva, pois vivia de agropecuária. Se você não tivesse o perfil de comércio, estava fadado ao fracasso, ao ostracismo social. Nesse contexto que eu acho importante o papel do Instituto Federal hoje.

Mas você teve contato com a marginalidade?

Foi quase que inevitável, mas talvez, pela estrutura que eu carregava, pelos bons contatos que eu tive, não fui a fundo nisso. Eu comecei numa boa escola e mesmo depois de transferido, eu conheci pessoas interessantes. Na fazenda dos meus tios, até por falta de opção, eu tinha que ler. Era o único lugar que minha tia não me perturbava. A minha prima tinha uma pequena biblioteca, apesar dela não ter estudado. Então, desde que aprendi a ler, aos sete anos, eu ficava lendo. Meu tio me ajudou. Mesmo sem saber na época, aquilo acabou me ajudando. Tive contato com livros de história antiga, livros de filosofia, livros clássicos nacionais, como Dom Casmurro, que li antes dos oito anos de idade, mas claro que eu nem sabia o que era. Isso mais tarde me ajudou no vestibular e até na formação do caráter.

Nas Moreninhas, eu tive um contato mais próximo com as questões que afligem grande parte da sociedade menos abastada brasileira. Eu quase morri numa briga de gangues. Mas eu não tinha índole pra coisa. Eu estava ali por questões de sobrevivência. É o meio que você tá, não tem como você não se adaptar. Não tem jeito, tem que fazer. Então na hora da prática do vandalismo, dos pequenos delitos, se eu pudesse evitar, eu não fazia. Mas fiz, como todo e qualquer jovem que não tem assistência do Estado. Eu tinha uma deficiência familiar. Minha mãe era faxineira do Estado e ganhava uma miséria. Ainda tinha o fato de o salário atrasar até seis meses. Não tínhamos o que comer, minha mãe tinha que sair da escola e ainda trabalhar em casa de família para termos o que comer. Meu sonho de consumo era conseguir um emprego de ajudante de pedreiro para, talvez, no final de semana ter um dinheiro qualquer e adentrar um clube e extravasar. Eu participei de tudo isso. Fiz tudo isso. Não sou melhor que ninguém ali, mas eu tinha uma certa carga educacional que me salvou, que me afastou disso.

Nessa fase você também trabalhou.

Trabalhei. Desde os doze anos, desde que eu voltei pra minha mãe. Nós tínhamos que sobreviver pra ter o que comer.

O que você fez?

De tudo! Eu já vendi picolé na rua, vendi salgado na rua, trabalhei de servente de limpeza, limpava banheiros. Para sobreviver, fazia coleta de frutas, quase como silvícolas, ali na mata do entorno. Tinha pequi, guavira, marmelo, mamica de cadela. Fiz pequenos assaltos nas chácaras, nas plantações das chácaras. Roubava milho, abacaxi, cana, essas coisas assim. Essa parte da invasão da propriedade alheia, mesmo que fosse pra sobrevivência, é reprovável. Mas essa parte da coleta, eu tenho boas memórias. Eu achava legal ir ao mato, buscar. Porque eu fui criado em fazenda, gostava desse contato.

Quando você começou a achar um rumo para seguir na vida?

Quando eu completei treze anos eu adentrei a mirim em Campo Grande. Eu tive alguma formação lá dentro. Fomos encaminhados ao mercado de trabalho. Meu primeiro emprego foi de vender café na rua, Colmeia Coffee chamava. Depois, consegui uma vaga na Caixa Econômica Federal e depois prestei serviço durante quase três anos ou mais na UFMS, trabalhei na gráfica. Os servidores de lá foram pessoas extremamente importantes também na minha formação. Eles tinham contato com cultura e, observando a minha situação, o que se chama hoje de menor em situação de risco, eles me orientavam, conversavam. Eles sabiam da minha situação, que eu era órfão de uma família extremamente carente financeiramente. Eles me orientavam profissionalmente e perdoavam muitas falhas. Foram extremamente importantes pra mim, acabaram sendo a minha figura paterna.

Depois entrei numa loja de fotos. Estava lá trabalhando e quando tinha um mês de carteira assinada meu primo me chamou para fazer prova pra fuzileiro. Eu já tinha ouvido falar, mas eu tinha me frustrado da primeira vez que tentei o Exército, pois tive que sair por um problema pessoal que tive com um terceiro sargento. Mas fui. Para fazer as provas, eu tinha que me deslocar para Corumbá e eu não tinha um centavo no bolso. Nós tínhamos que sair pedindo carona e comida. Nós saímos com dois dias de antecedência e com dois dias pra voltarmos. Nisso, a loja de fotos me dispensou por causa das faltas. Fiquei desempregado de novo. As provas na Marinha são longas, são sete meses. Eu não tinha perspectiva de nada, então eu estudei. Passei na prova escrita. Daí teve teste físico, psicotécnico, primeiro exame médico, segundo exame médico, até eu ser aprovado. Adentrei o glorioso corpo de fuzileiros navais da Marinha de Guerra do Brasil. Tive a honra de servir naquela tropa durante quase seis anos.

Depois, quando veio a minha baixa, fiquei desempregado e de novo não tinha perspectiva. É muito ruim quando você sai de um ambiente militar e volta pra vida civil. Você fica extremamente deslocado. Daí eu falei, vou voltar a estudar. Fiz o vestibular, passei na UFMS para Ciências Contábeis. Comecei a fazer faculdade e comecei a trabalhar de moto-táxi pra sobreviver. Porque era o que tinha em Corumbá. Trabalhava de madrugada e assim foi até eu terminar.

O estudo tem sido sempre seu refúgio. Você tinha quantos anos na época?

Eu entrei com quase 30 anos na faculdade. Daí eu não conseguia estágio porque as empresas que contratavam em Corumbá têm políticas de formação de pessoas. O perfil ideal é aos 18 anos ou que nunca tenha trabalhado, com máximo 21. Eu terminei a faculdade sem conseguir fazer um estágio. Mas eu precisava trabalhar pra sobreviver. Então, juntei R$ 500 e troquei a minha categoria da CNH de B para D. Daí, tentei uma vaga pra motorista de caminhão. Até questionaram porque eu, com nível superior, queria trabalhar de motorista. Eu falei "preciso comer". Trabalhei e gostei. Confesso pra você, foi um dos trabalhos que eu mais gostei de fazer. Depois fiz concursos e me chamaram na Prefeitura de Corumbá. Depois saiu a convocação da UFMS e trabalhei um ano lá. Então, abriu esse concurso do IFMS. Eu não tinha noção do que era, pensei que era ligado à UFMS. Fiz um planejamento, estudei, passei e cá estou.

Como foi a sua chegada ao IFMS?

Acho que como pra todo mundo. Eu tinha uma perspectiva e confesso que ela foi frustrada. Eu pensei nossa, as pessoas não têm noção da responsabilidade que o cargo tem. Como prepondera a questão educacional aqui, acho que não existe uma real valoração de determinadas funções administrativas. As pessoas esquecem que sem a gestão administrativa não existe salário, não existe o móvel, não existe o imóvel. Não existe nada disso. As questões legais são obedecidas, regidas, administradas todas ali. A responsabilidade é grande. É o meu CPF, é meu o CRC (registro no Conselho Regional de Contabilidade) ali pro TCU, pra CGU e pra Polícia Federal. Fico bastante apreensivo e pensei que teria uma estrutura, que teria o apoio necessário pra o real exercício da função e não foi bem assim no começo. Cheguei, observei isso, vi as dificuldades, questionei algumas coisas. Aí começaram alguns problemas, mas não é dada atenção a isso. Tanto é que hoje é difícil você conseguir um servidor pra trabalhar na Proad. Ninguém quer trabalhar ali. Os caras querem setores que não sofrem pressão. Não estou menosprezando as funções de a, b ou c. Alguns setores são mais pesados mesmo.

Por exemplo, financeiro, orçamentário, administrador de serviços gerais que todo dia escuta, porque o motorista não veio, porque o carro quebra, a janela abre, o banheiro vaza, porque o telhado pinga. O servidor de compras, que põe o CPF lá, o pregoeiro que é o servidor que assina o processo. As pessoas não têm noção da responsabilidade que é. Acham que você tem o mesmo valor. Eu acho que desiguais são tratados de forma igual. Isso é conceitualmente contrário ao que se preconiza em termos de gestão lá fora. Se você vai fazer uma gestão por risco, tudo aquilo que a gente estuda dentro da faculdade, faz-se o contrário dentro do governo e não é uma questão do IFMS. Isso aqui não é uma crítica à gestão atual, nem à gestão anterior. Pode publicar isso mesmo. Não é. Simplesmente eles recebem assim e tem que fazer assim. É uma questão de estrutura administrativa da nação. Da União em si. Apenas apagam-se incêndios. Como profissional e cidadão eu tento realizar da melhor forma possível, dentro daquilo que eu observo que outros órgãos realizam, e que está adequado a lei.

Você acha que o Instituto nesse cenário, por causa do trabalho dos servidores, conseguiu crescer, conseguiu melhorar?

Crescer, sim. Houve uma expansão. Os câmpus foram entregues. Houve falhas em alguns projetos, como o do Câmpus Campo Grande. Mas houve melhorias, acredito que sim. Está existindo uma maior participação quando houve a troca da gestão. O professor José Jorge [pró-reitor de Administração] fomentou bastante isso, e a professora reitora também, para que fosse realmente realizada a descentralização dos trabalhos.

Então a descentralização está sendo positiva?

Nesse ponto de vista, sim. Apesar de que eu achava que à época não deveria ter sido feito como foi, já que foi descentralizado umas coisas e outras não. A execução era toda aqui e a descentralização existia apenas nos cargos, mas na execução não. A responsabilidade e a realização das tarefas eram todas aqui. O trabalho era aqui e sobrecarregava demais a Proad, só quem trabalhou lá sabe. Então eu acredito que sim. Tá havendo uma expansão, porque com a entrega dos câmpus, há uma maior demanda, há uma maior perspectiva, a sociedade vendo um produto ali acabado, semiacabado.

Até pouco tempo atrás não, mas hoje eu ainda tenho contato com alguns amigos que os filhos querem entrar aqui, porque um primo está aqui. Temos alunos que foram para a Europa apresentar trabalho. Qual escola dá essa possibilidade? Pode ser o colégio particular mais caro, duvido que ele propicie que um cidadão possa ir lá apresentar seu trabalho, às expensas do erário, ganhando diária, passagem, tendo a capacidade e a possibilidade de vislumbrar um universo à frente, que até pouco tempo atrás era ignorado, inimaginável.

O que você sente vendo essas coisas, que também são resultado do seu trabalho, acontecerem?

Este é um ponto extremamente positivo e eu acho até que se nós tivéssemos a estrutura já pronta, seria um dos pontos de um marketing agressivo, que nós poderíamos demonstrar para tentar atrair mais estudantes. É muito interessante você ver isso, esses projetos. Espero que esses projetos sejam desenvolvidos de forma meritocrática, para alunos que realmente tenham capacidade, dando retorno à sociedade. Se isso for realmente feito dessa forma, eu acho que o Instituto vai ser de extrema importância para a sociedade sul-mato-grossense.

Como que você acha que o IFMS poderia melhorar mais?

É muito complicado porque isso é muito relativo. A gente pode melhorar em que, por exemplo? Nós podemos melhorar na relação de qualidade de vida dos servidores. Em relação à qualidade dos serviços prestados à sociedade e se não são prestados de forma adequada, quais os pontos negativos? É muito complicado falar. Eu acho que nós podemos melhorar, digo em termos administrativos, em termos de prestação de serviços, porque nós somos um prestador de serviço. As pessoas, infelizmente, alguns servidores não adentram o cargo conscientes disso. Se esquecem de que eles são servidores da sociedade e não estão aqui para serem servidos pela sociedade. Entram e querem simplesmente usufruir, não existe a doação que em tese se deveria ter.

Parece que está bem claro para você que uma das coisas a melhorar é a formação do servidor e a visão do servidor sobre a responsabilidade dele. É isso?

Formação não seria a palavra correta. Só se for formação moral de alguns. A consciência social, infelizmente, não são todos os colegas de trabalho que possuem.

O que você faz fora do Instituto?

Eu sempre tentei suprir lacunas na minha formação. Eu tenho algumas criticas quanto a minha formação, sei que foi deficitária. Por exemplo, eu não falo outro idioma, eu acho terrível isso.

Quando você não está no IFMS, você está estudando?

Quando eu vim pra cá, eu pensei que teria uma estrutura e que isso até me alavancaria. Mas, o excesso de trabalho, a responsabilidade e as preocupações acabaram amarrando. Por exemplo, eu fiz só uma pós-graduação depois que adentrei aqui. Eu saía daqui e ficava na biblioteca da federal até fechar, 10 horas da noite, pra poder estudar pra poder escrever o material da pós. Esse ano, estou passando por algumas transformações pessoais. Tive um problema sério de saúde, com risco inclusive de morte, uma trombose na perna esquerda.

Se eu pudesse, ficaria o dia inteiro na biblioteca. Eu amo. Eu gosto. Acredito que o profissional não deve ter uma formação bitolada. Ele tem que ter noção de psicologia, de sociologia, de direito, de economia e de todas essas ciências que possuem relações biunívocas entre si, ou não será um bom profissional. Como fui militar, gosto muito da prática de exercícios. No ano passado, por questão de horários, de carga de trabalho, tive que abdicar disso. Quero ver se consigo no final do ano voltar à prática de exercícios pra que eu possa oxigenar o cérebro.

Como você acha que poderia melhorar o trabalho no seu setor?

Nós temos um setor que requer um nível de leitura muito grande. São leis, são pareceres, tem toda uma coisa em direito. Direito tributário, direito previdenciário, direito do trabalho. Não é fácil. É a questão contábil, é a contabilidade, é muita coisa que a parte administrativa tem que executar. Eu não sento ali e apenas aperto botões. Eu tenho que ter todo um arcabouço para que eu possa tomar e auxiliar uma tomada de decisão. Nós precisamos de uma complementação, de uma leitura hedônica, para que te alivie, e de uma leitura técnica. Acho que com uma carga menor de trabalho, em dois turnos de doze horas, nós atendemos de uma forma extensiva à sociedade num período maior. Óbvio, ao invés de oito, doze. E possibilita ainda uma maior e melhor qualidade de vida ao servidor.

Você quer continuar estudando?

Eu quero ainda ter uma outra formação. Estou decidindo e vou reajustando alguns parâmetros da minha vida. Quero retornar para as minhas leituras clássicas. Acho importante, não porque eu quero me aparecer, porque eu quero fazer uma citação x ou y num documento, não é isso mesmo. É a formação de caráter, é a formação como cidadão para o melhor exercício da minha função. Só isso.

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